Falar sobre inclusão de pessoas com deficiência no Ministério de Aventureiros e Desbravadores é, antes de tudo, reconhecer que estamos diante de um chamado cristão e de uma exigência legal.
Quando falamos de pessoas autistas, essa responsabilidade se torna ainda mais urgente. São crianças e adolescentes que exigem sensibilidade, conhecimento e, principalmente, um ambiente seguro, respeitoso e preparado. A legislação brasileira é clara: inclusão é obrigatória em todos os âmbitos da sociedade — e isso abrange, sem exceção, os nossos clubes.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) assegura às pessoas com deficiência o direito à participação plena e efetiva em todos os espaços sociais. Isso significa que não basta aceitar a presença de uma criança autista em nossas reuniões — é necessário incluí-la de fato.
E aqui está a diferença fundamental entre integração e inclusão: integrar é permitir que a pessoa esteja presente, ainda que à margem das atividades; incluir é garantir que ela participe, se sinta parte, seja respeitada, estimulada e compreendida.
A criança autista tem o direito de estar inserida em todas as atividades do clube, com as adaptações necessárias e com o apoio de uma liderança capacitada.
Antes de aprofundarmos as práticas inclusivas, é fundamental que os líderes compreendam o que é, de fato, o Transtorno do Espectro Autista (TEA). De acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-11), em vigor no Brasil desde 2022, o autismo está classificado sob o código 6A02, que substitui os antigos diagnósticos isolados como síndrome de Asperger, autismo infantil e transtorno invasivo do desenvolvimento.
O termo “espectro” é utilizado porque o autismo não se manifesta de forma única — há uma ampla variação nas características, intensidades e necessidades de suporte.
O autismo é uma condição do neurodesenvolvimento e é reconhecido legalmente como uma deficiência (conforme o §2º do art. 1º da Lei nº 12.764/2012, conhecida como Lei Berenice Piana). Essa condição afeta principalmente a comunicação social, o comportamento e a forma como a pessoa percebe e reage aos estímulos do ambiente.
Por isso, o autismo é considerado uma deficiência oculta, ou seja, não é visível fisicamente, o que muitas vezes leva à incompreensão e ao julgamento equivocado por parte de pessoas que não reconhecem os sinais ou não compreendem suas manifestações. O diagnóstico clínico leva em consideração dois domínios principais:
- Déficits persistentes na comunicação social e na interação social: isso pode incluir dificuldades em iniciar ou manter conversas, compreender expressões faciais, interpretar gestos, entender regras sociais implícitas ou manter o contato visual.
- Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades: pode haver fixação por temas específicos, necessidade de rotinas rígidas, hipersensibilidade ou hipossensibilidade a estímulos sensoriais (como sons, cheiros, luzes e toques), além de movimentos repetitivos.
O CID-11 também classifica o autismo em níveis de suporte (leve, moderado e intenso), e não em “graus de autismo”, como se costumava dizer. Isso porque o foco atual não está em classificar a “gravidade” da condição, mas em compreender qual o nível de apoio que a pessoa precisa para participar da vida cotidiana com dignidade e autonomia.
- Nível 1 (baixo suporte): a pessoa pode ter independência funcional, mas apresenta desafios na interação social e na flexibilidade de comportamento.
Exemplo: Lucas é um aventureiro que fala fluentemente, mas tem dificuldade em entender ironias ou mudanças repentinas de rotina. Se a caminhada programada atrasar, ele pode ficar ansioso ou insistir para que tudo aconteça como combinado. Com um roteiro visual e uma explicação clara de antemão, ele participa de todas as atividades com autonomia.
- Nível 2 (suporte moderado): há maior dificuldade de adaptação a mudanças e mais necessidade de suporte para comunicação e autorregulação.
Exemplo: Ana é uma desbravadora que se comunica melhor por gestos e tem grande sensibilidade a sons altos. Em reuniões com muito barulho, pode se isolar ou cobrir os ouvidos. Com o uso de abafadores de som, um roteiro antecipado das atividades e o apoio de um monitor próximo, ela se engaja bem nas atividades, especialmente quando elas seguem uma rotina previsível.
- Nível 3 (suporte substancial ou intenso): a pessoa necessita de apoio contínuo para atividades básicas, comunicação e segurança.
Exemplo: Pedro é um aventureiro que não se comunica verbalmente e precisa de acompanhamento contínuo para entender comandos simples. Ele se sente mais seguro quando tem um líder de referência sempre por perto, e responde bem a materiais visuais e músicas calmas. Participa de atividades com o apoio constante de um adulto que o guia com paciência e estratégias individualizadas.
Todas as atividades dos clubes — espirituais, recreativas, instrutivas ou missionárias — devem ser adaptadas quando necessário. Isso não significa perder qualidade ou mudar o propósito da atividade, mas sim exercer amor prático, com intencionalidade e planejamento.
E mais: a cultura da inclusão precisa ser vivida por todos os membros do clube. É papel da liderança trabalhar essa temática com as crianças e adolescentes, de forma didática, lúdica e constante. Informação é antídoto contra o preconceito.
Quando compreendemos o que é o autismo, como lidar com as diferenças sensoriais, como acolher e respeitar os limites do outro, passamos a conviver com mais empatia e menos julgamento.
Por isso, é fundamental que os clubes e regiões tenham líderes que se especializem nessa temática. Ter na diretoria pessoas com formação ou experiência em inclusão não é luxo, é necessidade. A boa vontade precisa ser acompanhada de preparo. E, felizmente, a Igreja tem se estruturado para isso.
O MAP – Ministério Adventista das Possibilidades (instagram @map.dsa), por meio da RAAFA – Rede de Apoio Adventista à Família Autista (instagram @raafa.autismo), tem oferecido suporte a igrejas, líderes e famílias em todo o território nacional. A RAAFA é mais do que um apoio técnico: é uma poderosa ferramenta de evangelismo e acolhimento, que aproxima pessoas do amor de Cristo por meio da inclusão prática e respeitosa.
No dia 02 de abril, celebra-se o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, e essa é uma excelente oportunidade para os clubes realizarem ações educativas que envolvam o clube e a igreja. A cor símbolo da data é o azul, e ela pode ser utilizada como ponto de partida para atividades criativas e significativas. Abaixo, algumas ideias:
- Classe Bíblica Azul: um encontro com linguagem acessível, materiais visuais e interativos, explicando os princípios da inclusão com base na Bíblia e no exemplo de Cristo.
- Trilha da Empatia: estações com experiências sensoriais para que os desbravadores e aventureiros entendam, de forma lúdica, como uma pessoa com hipersensibilidade auditiva ou tátil pode perceber o ambiente.
- Culto Especial de Conscientização: uma programação preparada pelos clubes na igreja local, com dramatizações, testemunhos de famílias e reflexões bíblicas sobre empatia e respeito.
O uso de cordões identificadores, como o cordão girassol (símbolo de deficiências ocultas) ou o cordão de quebra-cabeças (associado à causa do autismo), também pode ser incentivado para sinalizar a necessidade de acolhimento ou prioridade. O símbolo do quebra-cabeças representa a diversidade e complexidade do espectro autista, lembrando que cada pessoa autista é única — e merece ser respeitada como tal.
Outro recurso extremamente útil é a criação de um livro de atividades personalizado para eventos como acampamentos ou passeios, contendo informações visuais e organizadas sobre o que acontecerá: onde a criança vai dormir, horários, o que levar, quem serão os líderes, entre outros aspectos da atividade. Essa antecipação ajuda a reduzir a ansiedade e dá segurança.
Também é fundamental que os clubes estejam preparados para lidar com crises sensoriais. Abafadores de som, fones com músicas calmas, objetos de autorregulação e, principalmente, a presença de salas sensoriais (ou “salas azuis”) são recursos essenciais.
Esses espaços silenciosos e adaptados devem ser providenciados tanto nos eventos quanto nas igrejas, para que a criança possa se reorganizar emocionalmente em segurança.
E precisamos reforçar: a terminologia correta é “pessoa com deficiência”, conforme a legislação nacional e a Convenção da ONU. Evite termos ultrapassados como “portador” ou “especial”. A deficiência não define a pessoa — apenas impõe à sociedade o dever de se adaptar para que a dignidade de todos seja respeitada.
Todo esse esforço precisa estar alicerçado na missão de Cristo. A Bíblia nos ensina que todos foram criados à imagem de Deus (Gênesis 1:27), que em Cristo não há acepção de pessoas (Atos 10:34) e que todos somos membros igualmente importantes no corpo de Cristo (1 Coríntios 12:22). “Nessa estrutura, os membros que parecem mais fracos são indispensáveis”.
Esses princípios nos lembram que o valor de uma vida humana não está em sua capacidade, mas no amor incondicional de Deus. Incluir é evangelizar. Incluir é obedecer. Incluir é amar de forma prática.
Pessoas com deficiência não são frágeis. São crianças e adolescentes em desenvolvimento, com dons e potencial únicos. E quando nossos clubes se adaptam para garantir sua plena participação, estamos respondendo com fidelidade ao chamado de Cristo.
Cristo não se distanciava de quem mais precisava — Ele Se aproximava. Ele falava na linguagem de cada um, acolhia com respeito e adaptava Seus métodos para que ninguém ficasse de fora. Esse é o modelo que devemos seguir como líderes, como clubes e como igreja.
Que os nossos clubes sejam, cada vez mais, ambientes verdadeiramente inclusivos, acessíveis, acolhedores e transformadores, onde toda criança — autista ou não — possa se sentir amada, segura, respeitada e guiada aos pés de Jesus.